O amor dos homens avulsosVictor Heringer
Companhia das Letrasago. 2016 ca. 42 € 160 S.

A maneira como Victor Heringer ancora o início da vida em nosso planeta — na abertura de seu romance O amor dos homens avulsos — num bairro dos subúrbios do Rio de Janeiro é típico de sua sensibilidade: «No começo, nosso planeta era quente, amarelento e tinha cheiro de cerveja podre. O chão era sujo de uma lama fervente e pegajosa. Os subúrbios do Rio de Janeiro foram a primeira coisa a aparecer no mundo, antes mesmo dos vulcões e dos cachalotes, antes de Portugal invadir, antes de o Getúlio Vargas mandar construir casas populares.»

E, no entanto, creio que essa centralidade da sua cidade não é a mesma que os leitores do Sul do Mundo experimentam nas auto-mitologizações de nova-iorquinos e parisienses. Há aqui um deslocamento geopolítico, mas com pouco glamour. O Rio de Janeiro não é a cidade das Luzes ou a que jamais dorme, mas nos aparece «feito daquela argila primordial, que se aglutinou em diversos formatos: cães soltos, moscas e morros, uma estação de trem, amendoeiras e barracos e sobrados, botecos e arsenais de guerra, armarinhos e bancas de jogo do bicho e um terreno enorme reservado para o cemitério. Mas tudo ainda estava vazio: faltava gente. Não demorou. As ruas juntaram tanta poeira que o homem não teve escolha a não ser passar a existir, para varrê-las.»

Uma fenda geopolítica

É claro que é direito de qualquer escritor iniciar o Mundo onde seu mundo se inicia: no Rio de Janeiro ou em Lhasa, em Adis Abeba ou Kamtchatka. Mas isso traz questões específicas para sua tradução e recepção fora do seu país. São questões geopolíticas e geopoéticas que nem sempre entram em conversas literárias. Para alguns leitores, trata-se de uma sensação instintiva de lacunas ao lermos obras oriundas de países que desconhecemos. Ou, talvez ainda mais perigoso: histórias de países que julgamos conhecer.

Esse texto busca se debruçar sobre o trabalho de Victor Heringer, nascido no Rio de Janeiro em 1988 e morto, por suicídio, na mesma cidade em 2018, pouco antes de completar 30 anos. Nosso foco é O amor dos homens avulsos, o romance que tem chamado a atenção do público internacional, e agora, após ser lançado em inglês, recebe na Alemanha sua tradução por Maria Hummitzsch. Mas até que ponto será necessário contextualizar o período histórico de vida do autor, em seu país específico, para um leitor na Alemanha? Os diálogos do autor com sua própria tradição, ou como nela venha a se encaixar, precisam ser compreensíveis para que um leitor estrangeiro aprecie o romance por suas qualidades literárias intrínsecas? Esse livro confirma ou subverte as expectativas de um leitor estrangeiro em relação à literatura produzida no Brasil?

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No próprio excerto citado ao início deste artigo temos um exemplo. Aquele sobrenome, Vargas, ali aparecido, evocará num leitor brasileiro mais do que uma simples contextualização histórica, mas o universo cultural do país em torno da Ditadura de Getúlio Vargas entre 1930 e 1945, ou de seu retorno ao governo, de forma democrática, em 1951, até seu suicídio em 1954. Vargas é portanto mais do que um nome para brasileiros, mas um período histórico, com sua cultura, música e literatura particulares.  Um leitor alemão precisará saber da Intentona Comunista de 1935? Da perseguição a Luis Carlos Prestes e Olga Benário? Da prisão e perseguição a escritores como Jorge Amado e Graciliano Ramos? Como a Era Vargas (1930-1945), com seu período ditatorial, se conecta ao período ditatorial seguinte (1964–1985), ilustrado no romance de Victor Heringer? Talvez um leitor alemão não precise dessas informações. Ao mesmo tempo, um leitor alemão, com seu próprio arcabouço de imagens dos períodos ditatoriais do seu próprio país poderá compreender as pressões que se exercem sobre os cidadãos de uma democracia que fracassa e afunda.